quarta-feira, 12 de março de 2008

Mas as crianças, Senhor!...


É impressionante o aumento nos últimos anos das crianças da minha consulta vítimas de problemas familiares. Na maioria dos casos os pais estão separados e elas vivem com a mãe; noutros são os avós que "aguentam" a situação. Chego a ter tardes de consulta de uma total monotonia pois as queixas são sobreponíveis e o pano de fundo também. As mães numa ansiedade crescente sem quererem perceber as razões das queixas dos filhos pedem desesperadamente análises, radiografias e - pasme-se - tomografias às crianças na esperança de encontrarem uma causa para a doença do filho ou filha. É tal a insegurança destes pais que me chegam a dizer que aquele filho ou filha não pode estar doente ou morrer porque vai ser a sua única companhia pela vida fora; por isso é nele ou nela que investem tudo em exclusividade, em termos afectivos! As crianças afogadas neste proteccionismo "selvagem", sofrem também a ausência do pai como figura de referência imprescindível e então, neste beco sem saída, somatizam toda a ansiedade em apelos constantes para que lhes dêem atenção... quando o que realmente lhes falta é simplesmente uma família!... Às vezes quando as mães me perguntam se não seria melhor pedir uma tomografia ao filho ou filha eu, sinceramente, o que me apetecia responder-lhes, por ironia, era se elas não quereriam antes fazer um exame profundo, uma tomografia quiçá, à sua própria família...
Ah! Que grande radiografia ou tomografia social não são estas minhas consultas diárias !...
Mas que remédios, meu Deus, posso eu ter para, ao menos, minimizar as dores desta terrível doença social?... Ainda hoje uma mulher me foi trazida pela Assistente Social com um bebé de cinco meses que nunca tinha sido observado desde o nascimento. Não tinha ainda vacinas, não tomava vitaminas, bebia leite de vaca inteiro, estava sujo e andrajoso...A mãe, pelo seu lado, não tinha mãe, nem pai, nem família, vivia sozinha e foi "descoberta" assim pelos vizinhos. Perguntei-lhe, a medo, quem era o pai da criança, respondeu-me que isso não interessava para nada. Perguntei-lhe, ainda com menos convicção, como tinha contraído em plena gravidez a hepatite B, respondeu-me que toda a gente sabe que a hepatite B se pode apanhar com toda a facilidade quando se está grávida. Não lhe perguntei mais nada... Calado observei a criança. No meu pensamento milhares de imagens passaram em turbilhão - discursos em praças e em púlpitos, comícios revolucionários e outros menos, guerras reais e das estrelas, festas de pouca e muita caridade, sei lá eu... Qual destes eventos pôde tocar, alguma vez, esta mulher? Quem lhe pode devolver a dignidade ?...Neste final de século ter pena das crianças e temer pelo seu futuro é muito pouco...Porque há várias misérias misturadas. Já nada é linear como outrora... Porque hoje é preciso ter sorte para ser criança a vários níveis, não só o da miséria material!...Talvez a miséria moral, a falta de valores na sociedade seja, para a formação das crianças, o mais importante. Porque hoje em dia é preciso ter sorte, acima de tudo, para viver em amor!...

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